Quando decidi projetar um site-portfólio, queria um espaço destinado à exposição de conteúdos que, direta ou indiretamente, compunham parte do meu referencial artístico e de vida. Mas não só: uma espécie de linha do tempo, onde coubessem aforismos e outros tipos de documento.
"Órbita" é aquilo que nos circunda; frequências que já estão à nossa volta e aquelas às quais escolhemos nos conectar. Seja como for, é algo que está além, como uma utopia, algo a ser emulado, observado. Essa utopia um pouco se assemelha a de Eduardo Galeano: move o caminhar. São pessoas-farol, ideias-compasso, pensamentos-bússola, cosmologias-norte que integram o sentido do Ser Artista para além de sua educação formal. Essa outra formação — irrestrita, multidisciplinar, poliglota —, pautada em diferentes áreas do conhecimento, confere uma dimensão extra ao trabalho. É através dela que acessamos infinitas possibilidades de composição e articulação da linguagem cênica. Assim, recorremos ao passado, ao mesmo tempo que damos assistência ao presente, para criar forças estéticas e potências discursivas com habilidades premonitórias. Em outras palavras, capazes de pensar o futuro.
ENTREVISTA ENTRE ADERBAL F. F. E ARIANE MNOUCHKINE
Aderbal Freire Filho: Certa vez você disse que você e seus companheiros criaram o Théâtre du Soleil para serem felizes. Como o teatro pode contribuir para produzir felicidade no mundo sombrio em que a gente vive?
Ariane Mnouchkine: Eu me preocupo em, no geral, não me fazer essa pergunta, porque é uma pergunta esmagadora. E é uma pergunta particularmente esmagadora considerando o momento atual. De 20 anos para cá essa questão se tornou ainda mais esmagadora.
Bom, há alguns provérbios que, ao longo do tempo, a gente inclui dentro de certa tradição, das tradições da nossa trupe, porque uma trupe cria uma tradição. Quando uma companhia perdura, quando ela tem essa chance, esse milagre, aos poucos ela constrói uma tradição. Suas superstições, rituais e princípios, para não dizer leis. Entre os provérbios que adotamos está: "Procure o pequeno para encontrar o grande". E é o que digo aos atores.
Isso não é uma resposta para a pergunta, mas é um método.
Nós criamos o Soleil pensando em sermos felizes. De um modo um tanto confuso, no nosso cérebro de jovens arrogantes que éramos, a gente pensava em conseguir fabricar a felicidade para as pessoas que viriam nos assistir. A gente era arrogante, mas não era idiota. A gente não sabia nada, mas talvez soubéssemos, sem uma formulação tão clara, que o teatro é algo concreto, e que a felicidade também.
E que a felicidade começa, às vezes, em colocar todo o seu coração em alguma coisa, como na preparação de um ovo na chapa. No fundo, isso é budista. É fazer com que mesmo no pequeno exista uma busca pela beleza, pelo sabor, pela estética, em tudo: desde a abertura das portas do teatro. Então eu não me coloco a pergunta de como o teatro vai produzir felicidade num mundo tão infeliz como o nosso atual. A questão que eu me coloco é: Como a cada dia, como hoje, durante os ensaios com as atrizes, de que modo que, concretamente, cada uma pode ter um pequeno momento de crème de la crème?
Sentir que se experimentou essa sensação de "Nossa, tive um pequeno momento do crème de la crème", mesmo que tenha durado apenas três segundos. É isso a felicidade, no fundo. São as atrizes e atores que, durante um dia inteiro de trabalho, conseguem alcançar e produzir isso durante cinco segundos, esse instante em que surge o teatro, de verdade. É saber que quando o teatro aparece a gente sabe: "Nossa, isso é teatro". Não é só alguém com um figurino dizendo palavras. É alguma coisa a mais... Há um deus que está ali, uma divindade.
Pois essa pergunta de como contribuir para a felicidade do mundo, um padeiro também pode se colocar. E a resposta dele é fazer o melhor pão possível. O mais saudável, gostoso, saboroso, cheiroso e bonito para os olhos... Ou seja, fazer um pão lendário. E nesse momento o padeiro vai poder dizer que ele participou como uma faísca para a beleza do mundo.
Me desculpem, o mundo vai mal sim, mas o mundo é muito bonito. É um doente muito bonito.
Aderbal Freire Filho: Esses cinco segundos compõem um momento indizível. Porque é uma sensação, uma percepção de um momento especial. Mas que elementos entram na composição desse momento, o que é preciso para se chegar a esses cinco segundos indizíveis?
Ariane Mnouchkine: No nosso último espetáculo, "Um quarto na Índia", Shakespeare nos deu a honra de aparecer. Havia a personagem de um jovem diretor que está na merda, e começa a perguntar "Qual é o seu segredo? Me dá um pedacinho do seu segredo!", então Shakespeare aparece e responde: "Trabalhe, trabalhe de novo. Sue, sue e sue de novo". Esse é o segredo.
Como você diz, é algo indizível, mas é imediatamente reconhecível. Do profissional mais avançado ao espectador mais juvenil e ignorante, quando o teatro se dá e está ali, todo mundo reconhece. Até o mais invejoso ator reconhece imediatamente que o outro acabou de fazer teatro. E como isso acontece?
Suor, suor e suor de novo.
ATRIZ?
Gena Rowlands - A Woman Under The Influence (1974)
Zezé Motta - Tudo Bem (1978)
Rafael Martins - Inferninho (2018)
A vida é curta,
vamos a galope!
Philippe Gaulier
VHOOR - Boiler Room (2023)
HÉLIO OITICICA, PARANGOLÉS
Entrar na roupa, que é a própria obra de arte, autoriza uma intimidade e um convívio sem precedentes entre artista e espectador, e esta parceria é admirada e simulada no poema, que se faz roupa, e obra, e dança, no seu desenho gráfico e em suas sonoridades. Afora as duas estrofes que franqueiam o ingresso no texto-parangolé, reproduzindo o usual “Entre, a casa é sua”, todas as demais fazem corresponder à parte da casa uma peça do vestuário, conjugando-as pelo som – e assim fazendo música, ao som da qual se dança paramentado com o parangolé – e ampliando, em cada passo, o alcance das palavras.
Da camisa, se faz casa, da veste vestíbulo, da saia sala, do chapéu chão (ou vice-versa), do corredor corpo, da escada êxtase, do vestido vista – vista que abarca o mar. Ana não apenas homenageia o artista plástico e aprende com ele a fazer texto-roupa que o leitor pode vestir, poema-recinto onde o leitor pode entrar, mas interpreta a obra de Hélio Oiticica e abre-lhe dimensões, que, confirmando a sua concretude-corpo, ao mesmo tempo a transcendem.
(Daniel Aparecido Veneri, 2019)
Entre
a casa
é sua
sua casa -
camisa
suas vestes
vestíbulos
saia -
sala
chão -
chapéu
entre
a casa
é sua
corredor
para o corpo
escada
para o êxtase
vestido
com vista
para o mar
Parangolé
Ana Martins Marques:
Da Arte das Armadilhas, 2011
Maria Bethânia - Carcará (1965)
Antoñita Singla - Flamenco (1965)
GRACE PASSÔ, DRAMATURGIAS
Grace Passô - República (2020)
MUNIZ SODRÉ, O ESPAÇO DA
ÁFRICA NO BRASIL
Ao dançar, colocando-me ora aqui, ora ali, eu posso superar a dependência para com a diferenciação de tempo e espaço, isto é, a minha movimentação cria uma independência com relação às diferenças correntes entre altura, largura, comprimento. Em outras palavras, a dança gera espaço próprio, abolindo provisoriamente as diferenças com o tempo, porque não é algo espacializado, mas espacializante, ou seja, ávido e aberto à apropriação do mundo, ampliador da presença humana, desestruturador do espaço/tempo necessariamente instituído pelo grupo como contenção do livre movimento das forças.
[...] A dança é um descentramento, uma reelaboração simbólica do espaço.
Essa outra cosmologia é propiciada pelo jogo do culto. O apelo aos deuses implica a sacralização do espaço e do tempo. Do espaço, através de templos ou de lugares especiais para o culto; do tempo, através de datas votivas ou festivas. A festa (a palavra vem de Vesta, princípio sagrado de vitalidade indiferenciada) é a marcação temporal do sagrado. A festa destina-se, na verdade, a renovar a força. Na dança, que caracteriza a festa, reatualizam-se e revivem-se os saberes do culto. A dança, rito e ritmo, territorializa sacralmente o corpo do indivíduo, realimentando-lhe a força cósmica, isto é, o poder de pertencimento a uma totalidade integrada. Além disso, graças à intensificação dos movimentos do dançarino na festa, espaço e tempo tornam-se um único valor (sacralização) e, assim, autonomizam-se, passando a independer daquele que ocupa o espaço. A dança é propriamente integração do movimento ao espaço e ao tempo.
(Muniz Sodré: O Terreiro e A Cidade: A Forma Social Negro-Brasileira, 1988)
Ailton Krenak - Roda Viva (2021)
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover.
[...] E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida.
(Ailton Krenak: Ideias Para Adiar O Fim do Mundo, 2019)
LAURINHA LERO, AH ENTÃO É
ILEGAL DORMIR COM A TEVÊ
LIGADA?
Aqueles como nós
para quem o desejo
não é prenúncio,
mas já a aventura.
Ana Martins Marques
Jérôme Bel - Pichet Klunchun and Myself (2005)
Jérôme Bel - Véronique Doisneau (2004)
Dimitris Papaioannou - Primal Matter (2012)
Valeska Gert - Der Tod (1977)
HAMELET CONTRA DOM QUIXOTE
O cinema latino-americano tem sido historicamente — com raras exceções — sobrecarregado na expressão da realidade exterior; em muito realismo social, folclore, superfícies brutas. Pretendendo revelar a condição nossa ao som e à fúria de nossas aspirações e nosso comportamento social. No Brasil, desde os filmes de Glauber Rocha até Cidade de Deus. Até mesmo meu bom amigo Titón não conseguiu evitar uma jornada cumbana tragicômica em Guantanamera. Podem ser filmes clássicos, mas criam uma visão distorcida do nosso continente.
Petra Costa deu as costas ao som e à fúria, voltou-se para dentro para explorar a nossa subjetividade, mergulhou nas águas da nossa consciência e nossa necessidade de uma identidade individual, pessoal. Elena emerge do ventre dos pais socialmente comprometidos. Ela até usa imagens de arquivo para afirmar as origens e então se afasta do coletivo para explorar o individual – o restante do filme é a urgente necessidade pela expressão do self. Sofremos de um excesso de Dom Quixote em sua absoluta certeza e muito pouco das dúvidas e da ambiguidade de Hamlet. Elena é um filme que procura restaurar o muito necessitado equilíbrio na América Latina entre a expressão exterior e a busca interior.
(Edmundo Desnoes: Elena, 2014)